segunda-feira, 3 de maio de 2010

Do Mundo Virtual ao Espiritual

Ao viajar pelo Oriente, mantive contatos com monges do Tibete, da Mongólia,
do Japão e da China. Eram homens serenos, comedidos, recolhidos em paz em
seus mantos cor de açafrão. Outro dia, eu observava o movimento do
aeroporto de São Paulo: a sala de espera cheia de executivos com telefones
celulares, preocupados, ansiosos, geralmente comendo mais do que deviam.
Com certeza, já haviam tomado café da manhã em casa, mas como a companhia
aérea oferecia um outro café, todos comiam vorazmente. Aquilo me fez
refletir: 'Qual dos dois modelos produz felicidade?'

Encontrei Daniela, 10 anos, no elevador, às nove da manhã, e perguntei:
'Não foi à aula?' Ela respondeu: 'Não, tenho aula à tarde'. Comemorei: 'Que
bom, então de manhã você pode brincar, dormir até mais tarde '. 'Não',
retrucou ela, 'tenho tanta coisa de manhã...' 'Que tanta coisa?',
perguntei. 'Aulas de inglês, de balé, de pintura, piscina', e começou a
elencar seu programa de garota robotizada. Fiquei pensando: 'Que pena, a
Daniela não disse 'tenho aula de meditação'!

Estamos construindo super-homens e super-mulheres, totalmente equipados,
mas emocionalmente infantilizados. Por isso, as empresas consideram agora
que, mais importante que o QI, é a IE, a Inteligência Emocional .
Não adianta ser um super-executivo se não consegue se relacionar com as
pessoas. Ora, como seria importante os currículos escolares incluírem aulas
de meditação!

Uma progressista cidade do interior de São Paulo tinha, em 1960, seis
livrarias e uma academia de ginástica; hoje, tem sessenta academias de
ginástica e três livrarias! Não tenho nada contra malhar o corpo, mas me
preocupo com a desproporção em relação à malhação do espírito. Acho ótimo,
vamos todos morrer esbeltos: 'Como estava o defunto'? 'Olha, uma maravilha,
não tinha uma celulite'! Mas como fica a questão da subjetividade? Da
espiritualidade? Da ociosidade amorosa?

Outrora, falava-se em realidade: análise da realidade, inserir-se na
realidade, conhecer a realidade. Hoje, a palavra é virtualidade. Tudo é
virtual. Pode-se fazer sexo virtual pela internet: não se pega Aids, não há
envolvimento emocional, controla-se no mouse. Trancado em seu quarto em
Brasília, um homem pode ter uma amiga íntima em Tóquio, sem nenhuma
preocupação de conhecer o seu vizinho de prédio ou de quadra!
Tudo é virtual, entramos na virtualidade de todos os valores, não há
compromisso com o real! É muito grave esse processo de abstração da
linguagem, de sentimentos: somos místicos virtuais, religiosos virtuais,
cidadãos virtuais. Enquanto isso, a realidade vai por outro lado, pois
somos também eticamente virtuais.

A cultura começa onde a natureza termina. Cultura é o refinamento do
espírito. Televisão, no Brasil com raras e honrosas exceções , é um
problema: a cada semana que passa temos a sensação de que ficamos um pouco
menos cultos. A palavra hoje é 'entretenimento' ; domingo, então , é o dia
nacional da imbecilização coletiva. Imbecil o apresentador, imbecil quem
vai lá e se apresenta no palco, imbecil quem perde a tarde diante da tela.
Como a publicidade não consegue vender felicidade, passa a ilusão de que
felicidade é o resultado da soma de prazeres: 'Se tomar este refrigerante,
vestir este tênis, usar esta camisa, comprar este carro, você chega lá!' O
problema é que, em geral, não se chega! Quem cede, desenvolve de tal
maneira o desejo que acaba precisando de um analista. Ou de remédios. Quem
resiste, aumenta a neurose.

Os psicanalistas tentam descobrir o que fazer com o desejo dos seus
pacientes. Colocá-los aonde? Eu, que não sou da área, posso me dar o
direito de apresentar uma sugestão. Acho que só há uma saída: virar o
desejo para dentro. Porque para fora ele não tem aonde ir! O grande desafio
é virar o desejo para dentro, gostar de si mesmo, começar a ver o quanto é
bom ser livre de todo esse condicionamento globalizante, neoliberal,
consumista. Assim, pode-se viver melhor. Aliás, para uma boa saúde mental
três requisitos são indispensáveis: amizades, auto-estima, ausência de
estresse.

Há uma lógica religiosa no consumismo pós-moderno. Se alguém vai à Europa e
visita uma pequena cidade onde há uma catedral, deve procurar saber a
história daquela cidade - a catedral é o sinal de que ela tem história. Na
Idade Média, as cidades adquiriam status construindo uma catedral; hoje, no
Brasil, constrói-se um shopping center. É curioso: a maioria dos shopping
centers tem linhas arquitetônicas de catedrais estilizadas; neles não se
pode ir de qualquer maneira, é preciso vestir roupa de missa de domingo. E
ali dentro sente-se uma sensação paradisíaca: não há mendigos, crianças de
rua, sujeira pelas calçadas...

Entra-se naqueles claustros ao som do gregoriano pós-moderno, aquela
musiquinha de esperar dentista. Observam-se os vários nichos, todas aquelas
capelas com os veneráveis objetos de consumo, acolitados por belas
sacerdotisas. Quem pode comprar à vista, sente-se no reino dos céus. Se
deve passar cheque pré-datado, pagar a crédito, entrar no cheque especial,
sente-se no purgatório. Mas se não pode comprar, certamente vai se sentir
no inferno... Felizmente, terminam todos na eucaristia pós-moderna,
irmanados na mesma mesa, com o mesmo suco e o mesmo hambúrguer do
McDonald's.

Costumo advertir os balconistas que me cercam à porta das lojas: 'Estou
apenas fazendo um passeio socrático.' Diante de seus olhares espantados
explico: 'Sócrates, filósofo grego, também gostava de descansar a cabeça
percorrendo o centro comercial de Atenas. Quando vendedores como vocês o
assediavam, ele respondia: 'Estou apenas observando quanta coisa existe de
que não preciso para ser feliz'.

Frei Beto

Nenhum comentário:

Postar um comentário