quarta-feira, 20 de abril de 2011

Em busca do estoque perdido

Repensar distribuição 20/04/2011
 


Imagine a seguinte situação: você está reformando seu imóvel, em uma grande capital, e precisa comprar um complemento de pastilhas para finalizar os banheiros. Você retorna ao home center onde realizou a primeira compra, mas a cor da pastilha necessária não está mais disponível. Como um Indiana Jones, consegue localizar um atendente, que consulta um sistema veloz como um jabuti e confirma que, realmente, o estoque daquele item, naquela filial, está zerado. Você insiste, o atendente rola a tela, e informa que a filial da zona norte, distante cerca de 25km, possui 800 peças daquele item em estoque. Você não consegue conter sua indignação: como pode ocorrer um desequilíbrio tão grande entre os estoques das lojas? O atendente explica que isso é muito comum de acontecer, pois cada loja administra o seu estoque. Imagine que essa situação tenha ocorrido em uma das maiores redes de home centers do Brasil.

Essa situação não foi hipotética. Aconteceu comigo, nesta semana. Mais uma vez, senti na pele os efeitos de algo que temos insistentemente alertado aos varejistas: falhas na gestão de estoques. Nessa situação, meu papel era de consumidor, não de consultor de varejo. Obviamente minha experiência permitiria traduzir essa frustração em oportunidade de negócio, propondo um projeto de consultoria para que essa rede não mais frustrasse os seus clientes e/ou perdesse faturamento. Mas como a minha necessidade era finalizar rapidamente a minha obra, cruzei a cidade em busca do estoque perdido.

Em se tratando de produtos de ciclo de vida mais longo, como ocorre nos hipermercados, materiais de construção, livrarias e eletroeletrônicos, por exemplo, é inconcebível que ocorram desequilíbrios como acima relatado. Não foi somente a falta de determinado item em uma filial, tecnicamente chamado de ruptura: foi também o aparente excesso desse mesmo item em outra filial. Nessas situações, os produtos podem ser repostos em função do seu desempenho de vendas, por meio de algoritmos relativamente simples, que tratam de estoques mínimos capazes de suportar históricos de demanda. Tecnicamente, é a determinação do nível de serviço que será prestado ao cliente. Todos sabem que é financeiramente inviável manter 100% de nível de serviço. Mas é perfeitamente possível, além de altamente recomendável, que sejam avaliadas as características específicas dos diferentes grupos de produtos para definir o nível de serviço adequado em função do papel que cada um desempenha na loja.

Em grandes redes de materiais de construção, por exemplo, é comum parte do estoque de determinados itens ficar centralizada em depósitos regionais, para entrega direta ao consumidor final. Outra parte fica distribuída nas diversas lojas da rede. Estabelecer o gatilho que dispara antecipadamente o reabastecimento da filial, e mesmo o reabastecimento total da empresa (emissão de pedido de compra), é algo que requer ciência. Os desequilíbrios de estoques entre as filiais podem ser a face menos visível de ineficiências na gestão, pois, ironicamente, o estoque consolidado da empresa pode parecer adequado: a falta em uma loja fica compensada pelo excesso em outra, num jogo de soma zero.

Nos hipermercados, os principais fornecedores frequentemente desempenham esse papel, deixando, por vezes, o varejista “mal acostumado”. No pequeno varejo, por vezes os atacadistas possuem históricos de vendas mais consistentes que o próprio varejista. Advogamos que essa inteligência deve ficar no varejo, e não na indústria ou nos distribuidores. Até porque, se determinado produto faltar na loja, a imagem que fica arranhada é a do varejista, mesmo que a falha de abastecimento tenha sido da indústria. Além disso, aprimorar tecnicamente as equipes de compras e planejamento é algo que as empresas de varejo precisam fazer continuamente para preservar sua competência e independência na gestão dos estoques.

Entretanto, não se pode perder de vista o principal ator de todo esse cenário: o consumidor. Trazer essa perspectiva para a gestão de estoques é um dos maiores desafios das empresas de varejo, que tendem a preservar uma visão excessivamente técnica dos produtos comercializados. Construir uma estrutura mercadológica adequada, definindo o papel que as categorias desempenham sob a ótica do consumidor, é o início mais promissor para esse processo. Como ouvi certa vez, ainda criança, de forma irritantemente óbvia: “meu filho, em uma padaria pode faltar de tudo, menos pão e leite”.


Ivan Correa (ivan@gsmd.com.br), sócio-diretor da GS&MD – Gouvêa de Souza

Nenhum comentário:

Postar um comentário